A maior resposta de médio prazo à crise brasileira de energia está em Tucuruí, no Pará, repete a tecnocracia do setor. Com tal ênfase que as obras de duplicação da capacidade da hidrelétrica foram aceleradas ao máximo. No final do próximo ano, a primeira das 11 novas turbinas (12 estão instaladas) já poderia começar a gerar o suficiente para abastecer um mercado equivalente a metade do Pará, que tem seis milhões de habitantes. Trimestralmente, uma nova máquina seria posta em atividade.

Ao final da completa motorização, a usina teria 4,2 milhões de quilowatts acrescidos à sua atual potência, ou 8% do consumo nacional de energia. Finalizada em 2004, a capacidade instalada de Tucuruí pularia para mais de 8 milhões de kw, só um pouco abaixo dos 12 milhões de kw de Itaipu, a binacional da qual apenas metade da potência constitui a parte brasileira. A outra metade é paraguaia.

O investimento necessário para dobrar a casa de máquinas da hidrelétrica não é pequeno, em termos nominais: 1,4 bilhão de reais. Mas na relação R$/kw, o valor proporcional é insignificante. Uma usina nova com capacidade para 4,2 milhões de kw exigiria, na melhor das hipóteses, quatro vezes esse valor. E não poderia entrar em operação em menos do que o dobro do tempo. A duplicação de Tucuruí seria um maná do céu na conjuntura de vacas magras do país.

Em tese, sim. Na checagem, nem tanto. Os tecnocratas enchem a boca e inflam os pulmões para sublinhar os 4,2 milhões de kw que serão agregados aos 4,1 milhões atuais que Tucuruí já produz. Não realçam uma circunstância: apenas quatro das 11 máquinas adicionais da usina poderiam operar a plena carga no período de estiagem do rio Tocantins. Faltaria água para as outras sete turbinas. Entre o recorde possível no inverno e o decréscimo máximo do verão, a vazão do Tocantins pode diminuir 60 vezes.

Para não ser vitimada por tal depleção, a enorme hidrelétrica precisa acumular o máximo possível de água no semestre de chuvas mais intensas, utilizando-o como reserva no momento em que as máquinas passarem a exigir muito mais água do que a quantidade que chega ao reservatório. Gerando a plena carga, a usina engole atualmente seis milhões de litros de água por segundo. Com as 11 novas máquinas, que demandam um pouco mais de água, essa necessidade será de 12,5 milhões de litros por segundo – ou 2,5 bilhões de litros por minuto.

O reservatório da hidrelétrica armazena 55 trilhões de litros numa área de 2.850 quilômetros quadrados [revisada depois para 3,1 mil km2], que constitui o segundo maior lago artificial do país. Com a pressão do consumo de energia, a Eletronorte decidiu elevar em mais dois metros o nível máximo operacional do reservatório, que estava na cota de 72 metros. O impacto dessa providência está sendo avaliado antes que ela possa ser executada, mas o acréscimo na geração será de apenas 110 mil kw, menos de 3% da capacidade de produção da usina.

O contraste entre um reservatório de água que chegou ao ápice e a duplicação do seu uso para geração de energia explica a diferença entre a potência nominal da usina e sua potência firme. Podendo gerar hoje 4,1 milhões de kw, Tucuruí só garante 2,1 milhões médios no período de estiagem do Tocantins, um “fator de capacidade” de 50%. Essa diferença torna difícil convencer os paraenses de que no período crítico de chuvas a hidrelétrica tenha que receber suplementação do Nordeste para dar conta dos seus clientes.

A situação ficará mais deficitária com a ampliação da usina: dos novos 4,2 milhões de kw que ela poderá gerar no pique das chuvas, a capacidade firme baixará para meros 1,1 milhão de kw no auge do verão. Assim, se no total Tucuruí terá máquinas para produzir 8,3 milhões de kw, na estiagem ela só poderá gerar 3,3 milhões. O fator de capacidade estará bem abaixo do mínimo de padrão internacional, que é de 50%.

Qual a solução para o problema? Aumentar a oferta de águas do rio. Naturalmente, essa solução está além das possibilidades do reservatório de Tucuruí, cujo novo nível máximo operacional coincidirá com a crista da barragem, na cota um pouco acima de 74 metros. Mais um pouco de água, após a elevação de dois metros, a ser concluída ainda neste ano, e o Tocantins cobriria a barragem.

Evidentemente, não é hipótese a considerar. Corresponderia a um desastre. A única alternativa seria represar o rio mais acima, através de barragens construídas com o propósito de simples regularização. Uma operação conjunta permitiria segurar mais águas e complementar as carências de Tucuruí.

Mas seria plausível construir barragens enormes e caras sem agregar-lhes máquinas de geração de energia? Sobretudo com a privatização do setor energético, essa é uma hipótese tão pouco plausível quanto a do crescimento do reservatório da hidrelétrica. Tucuruí só atingirá um tamanho econômico maduro se uma ou mais barragens forem construídas rio acima, seja o próprio Tocantins ou o seu afluente principal, o Araguaia, no próprio Pará ou nos Estados vizinhos, o Tocantins e o Maranhão.

Essa é a contingência – indesejada, mas inevitável – da visão superficial que definiu o uso dos caudalosos rios amazônicos para grandes aproveitamentos energéticos. Os rios da região têm duas características básicas: um acentuado desequilíbrio de vazões entre o inverno e o verão, e uma baixa declividade.

Para compensar o discreto desnível natural do Tocantins, os barragistas tiveram que levantar em seu leito um enorme paredão de concreto, de 74 metros, para criar uma queda artificial com a qual fosse possível gerar energia em alta escala. A nova barreira fez a água voltar sobre seu curso, encorpado, numa extensão de quase 200 quilômetros, espraiando-se pelas laterais, afogando terras, árvores e animais, além de deslocar gente que vivia às suas margens.

Criou um lago artificial com perímetro de mais de sete mil quilômetros, quase quatro vezes o percurso da rodovia Belém-Brasília (ou 17 vezes a Rio-São Paulo). Mas agora é preciso formar outros lagos semelhantes para que o paroxismo energético se enquadre em cálculos econômicos de viabilidade, que certamente se tornarão ainda mais rigorosos se (e quando) a privatização do setor energético se consumar.

A conclusão amarga desse raciocínio é que o Brasil, orgulhoso de sua tradição de exímio construtor de barragens, particularmente com o objetivo de possibilitar hidreletricidade, é um país tremendamente atrasado na abordagem científica dessas obras, na compatibilização dessas realizações da engenharia com as condições da natureza.

Esse anacronismo haverá de cobrar um custo ainda maior porque, sem correção de concepção, Tucuruí vai ser ultrapassada em dimensão por um novo grande projeto energético com as mesmas características: a usina de Belo Monte, projetada para 11 milhões de kw no Xingu, um rio talvez ainda mais complicado do que o Tocantins. O Xingu deságua no que talvez seja o único delta interior do planeta, um intrincado sistema hídrico que ficará abaixo da futura barragem, sofrendo seus efeitos.

O que aconteceu no Araguaia-Tocantins com Tucuruí se repetirá no Xingu com Belo Monte: a primeira hidrelétrica será iniciada sem um plano de aproveitamento definido para toda a bacia. No primeiro caso, o erro foi justificado pelo pioneirismo: sabia-se pouco sobre a Amazônia, muito menos do que o necessário para assegurar a segurança de um empreendimento do porte da grande hidrelétrica.

Mas a situação atual já é bem diferente. Tanto que dois dos aproveitamentos previstos inicialmente pela Eletronorte para o Araguaia-Tocantins, as barragens de Marabá e de Santa Isabel, haviam sido descartadas por seu enorme custo ecológico. A própria estatal aceitou essa condenação. O problema é que então se imaginava que Tucuruí não tinha qualquer dependência das duas novas hidrelétricas. Hoje, é impossível negar que a elevação do fator de capacidade da primeira usina só será possível com as regularizações de montante.

Não se pode especular no mesmo sentido em relação a Belo Monte? A Eletronorte cancelou o desastroso conjunto de barragens complementares, Babaquara e Juruá, que provocariam o alagamento de mais de sete mil quilômetros quadrados. Mas quando a grande usina do Xingu começar a operar, tendo que ficar completamente inativa durante um quarto do ano por falta de água, não começará o jogo de pressão para construir barragens a montante do rio?

Refletindo sobre o problema racial no seu país na década de 60, o escritor americano James Baldwin previu que do próximo conflito o resultado seria o fogo, rferindo0se à questão racial dos Estados Unidos. Na Amazônia, diante da busca desenfreada à energia nos rios, será o dilúvio.

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Lúcio Flávio Pinto

He has been a professional journalist since 1966. He has worked in the newsrooms of some of the main publications in the Brazilian press.

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